Terça-feira, 8 de Fevereiro de 2011

As Crianças... Porquê as crianças?!

Gostava de as ver. Brincavam como todas as crianças o sabem fazer. Com dois paus dentro de um pneu velho corriam pela aldeia e com que mestria o faziam. Os seus risos ecoavam por entre o arvoredo. Com visgo apanhavam os pássaros. A estrada era de terra, essa terra vermelha que tanto me fascinou. Nela, levantando nuvens de pó, jogavam com velhas bolas de trapos.

Muitos eram filhos de tropas que por lá passaram. Quase todos por lá ficaram. No regresso à terra de onde saíram, deixavam para trás sementes suas. Quando engravidavam as mulheres, estas eram quase sempre abandonadas à sua sorte. Os filhos nasciam nus e nus ficavam já que os pais não os reconheciam como tal. Novas companhias, novos filhos. A aldeia vivia do cultivo e da... tropa. A tropa era uma das suas formas de subsistência.

Sentava-me muitas vezes na cadeira defronte do meu quarto, olhava para aquelas copas de árvore que esventravam o céu, ouvindo o som dos papagaios cinzentos que atravessavam o espaço no alcance de alguma fêmea para mais uma ninhada de novos papagaios.

E, assim, se passava os dias!

Num dia igual a tantos outros, ouvimos gritos lancinantes vindos da aldeia. Os locais em peso deslocavam-se para o nosso quartel, quisemos saber o que se tinha passado. Foi um dia trágico para aquela aldeia. Um jeep Land Rover, de um grupo de técnicos agrícolas que estavam ao serviço do plano Calabube, que moravam numa casa junto ao posto de polícia, apinhada de crianças, tinha batido numa árvore, por excesso de velocidade, e as crianças tinham sido projectadas. Umas já estavam mortas, outras ainda com sinais de vida.

Fretados os Unimogs para os ir buscar, foram levadas para a nossa enfermaria. Ali assisti à morte de muitas delas. Começaram a inchar e, em desespero, vimos que nada podíamos fazer. Os enfermeiros afadigavam-se tentando por todos meios salvá-las mas, um a um, o peito deixava de arfar e a cabeça caía inerte. Rebentaram todas por dentro. Nunca mais me esqueci do que vi. Depois foi o enterrar daquelas pobres crianças. Uma aldeia em peso a chorar e eu fiz parte do grupo que representou o quartel na despedida. Era o mínimo que podia fazer por eles, por aquele povo que nunca esqueci, o povo de Cabinda.

... e, os meus olhos, naquela despedida, ficaram mar.


foto: Onde estão as escadas era a criptografia. Ao fundo, lado esquerdo, a enfermaria (aqui a nossa Companhia estava de saída)


publicado por marius70 às 21:21
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