Terça-feira, 30 de Setembro de 2008

A Tua Vontade É a Tua Vitória!

align=justify>  A noite tinha caído sobre o aquartelamento. Cá fora as aves nocturnas faziam-se ouvir naquela floresta densa. A lua cheia corria devagar no céu. As sentinelas, nos seus postos, perscrutavam a mata procurando não ouvir um ruído que lhes alertasse os sentidos. A aldeia próxima dormitava e só aqui e ali se ouviam os latidos dos cães. Nas camaratas os soldados dormiam o sono dos justos, depois de mais um dia de patrulhas e de labuta no quartel.

  - Meu furriel, meu furriel – disse alguém abanando-me com firmeza.

  - O que é? – Pergunto eu, ainda estremunhado, afastando o mosquiteiro que, sobre a minha cama, impedia-me ser mordido pelos mosquitos mas não pelos miruins, esses mosquitos muito mais pequenos que se infiltravam prontos a mais uma refeição de sangue humano.

  - Há terroristas infiltrados no quartel – disse em voz baixa a sentinela.

  - Onde é que os vistes?

  - Junto à arrecadação do armamento.

  Estamos feitos, pensei eu!... Se conseguissem abrir a arrecadação teriam em seu poder o armamento suficiente para nos dizimar.

  - Como, quantos e quando os vistes?

  - Eram dois, estavam a rastejar em direcção à arrecadação e foi há poucos minutos.

  Peguei na minha HK21, já com a fita metida pronta a disparar. O bipé dava jeito para melhor segurar a metralhadora. Com a prática levada dos Comandos a HK fazia parte do meu corpo assim como a minha G3. Fosse para onde fosse, nem por um momento a abandonava. Mesmo quando se ia ao interior do Maiombe buscar lenha, a guarda era montada e ai daquele que se esquecesse dentro do Berliet da arma e colocasse os toros de madeira por cima, tínhamos o caldo entornado, na guerra não podemos facilitar a vida ao inimigo.

  Sussurrando aqui e ali, o quartel foi despertando e de pronto ali estávamos para vender caro a vida.

  Em grupos íamos saindo das nossas camaratas cada um de nós com o seu grupo de combate.

  A cada barulho todo o nosso corpo vibrava e adrenalina subia. Circundámos o quartel e de inimigo nem rastos. As nuvens tapavam o céu tornando a noite escura num quartel já de si em plena escuridão.

  Na arrecadação nem vivalma, no paiol idem, junto aos Unimogues e Berliets nada.

  De repente dou uma gargalhada. Todos os meus camaradas se entreolharam perante esta minha saída. «Terá enlouquecido? – Pensariam eles». E eu continuava a rir-me que nem um perdido naquela noite onde uma sentinela tinha visto dois vultos rastejando para a arrecadação.

  Perante o assombro dos meus camaradas apontei para dois cães que vagueavam no quartel. A lua cheia tinha surgido e batendo em cheio nos cães, a sua luz prolongava as suas sombras parecendo, à distância, dois vultos a rastejar.

  Ali estavam os dois terroristas. Por momentos não ganhámos para o susto mas foi bom que assim fosse, tudo está bem quando acaba em bem já dizia Voltaire.

  Elogiou-se a atitude do sentinela, pois nada deve ser deixado ao acaso, fomos até ao bar para refrescar as gargantas e as ideias, e depois cada um voltou para a sua camarata. Nessa noite os «Gorilas do Maiombe» tinham-se safado, faltavam ainda muitos mais dias e noites para se safarem de vez!

publicado por marius70 às 02:49
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A Floresta


  Estive um ano da minha juventude "dentro" da floresta. Uma floresta virgem que tanto nos dava o piar dos pássaros tropicais como os ruídos característicos dos gorilas de galho em galho ou atravessando as clareiras em grupos.

  Um ano onde a solidão imperava e os meus olhos aprenderam a olhar a vida de outra forma.

  Quando, numa clareira, olhava para o céu através das copas dessas árvores, sentia-me pequeno.   Somos uma ínfima parte de um Universo que está para além da nossa compreensão.   Nele não somos nada, nele somos tudo.

  Aprendi a respeitar e saber que ali a meu lado estava um ser humano que necessitava de nós como nós necessitávamos dele. É o dar e o receber.

  A floresta envolve não só a floresta em si, mas também quem dela depende, uma borboleta, um símio, um crocodilo, a água que por ela corre, as suas gentes e os seus costumes.

  Um dos aspectos interessantes numa floresta tropical é sem dúvida a chuva que de repente cai e, pouco depois, brilha um sol esplendoroso.

  Devido ao facto de ser uma floresta muito "fechada", as poças mantinham-se durante muito tempo sem se evaporar pois os raios solares não chegavam até elas.

  Os mosquitos aproveitavam para colocar os seus ovos e nós lá tínhamos que andar sempre com o mosquiteiro enrolado ao pescoço que era para quando nos deitássemos na mata evitar que eles nos picassem e nos transmitissem a malária, doença por vezes fatal.

Este é o gorila que habita a floresta onde estive. Um animal de respeito

  Uma vez íamos em patrulha à noite quando, de repente, vimos um vulto iluminado pela lua cheia, bem destacado na picada por onde avançávamos. Paramos para ver tão estranha personagem, e todos, pelo andar da criatura, pensávamos que era um gorila. Só que ele vinha na nossa direcção e tanto se aproximou que no silêncio da noite risos ecoaram, era afinal um camarada nosso.


  O nosso percurso era quase todo feito por picadas (trilhos abertos) mas na hora de dormir, enroscávamos nas nossas mantas de campanha, a cama eram as folhas secas das árvores e o céu o nosso tecto.


  Mulher cabindesa - Na família cabinda, a principal figura é a mãe, pois é ela que trabalha a terra - fonte básica de sustento da família, e gera os filhos que aumentam o poder do clã. As filhas são a base da continuidade e propagação do grupo e base da sustentação deste pelo amanho da terra. O homem dedica-se à caça, ao derrube de árvores de maior porte e à guerra. O Cabinda considera a actividade agrícola aberrante da sua dignidade.
E como eram lindas as cabindesas!...

 Umas das características das florestas são os seus sons e o seu silêncio. O restolhar de uma serpente, um pequeno rato no seu passinho apressado, o piar de uma ave, o quebrar de um galho e o silêncio que, de repente, se abate sobre este mundo.

  Parece que nesse momento tudo deixava de existir pois o silêncio era tal que também se ouvia.   Ouvir o silêncio!...

  Quantas vezes debaixo de uma árvore o ouvi. Até o vento, o ar em movimento, fica quedo como se o simples soprar, fosse um acto pecaminoso bulir com o espírito silencioso da floresta.

  Mas eis que de repente, como obedecendo a um chamamento, o som volta desta vez com mais força e vigor pois o espírito da morte tinha passado!...

11.08.2004

publicado por marius70 às 02:48
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A Melhor Noite!

... A minha floresta. Quantas vezes me embrenhava nela durante a noite. Caminhando, tentava juntar o meu espírito ao dela, auscultar o seu pulsar, sentir a sua presença, conjugar a minha solidão. Olhava para cima nada via. As copas das árvores tapavam a luz da lua. Tudo era escuro. De vez em quando um piar cortava o silêncio da noite.

Andava sem rumo definido pelo emaranhado de lianas, das folhas tropicais, tropeçando aqui e ali nas raízes daquelas grandes árvores que esventravam a terra mãe. Tudo era misterioso.

Certa noite, entregue aos meus pensamentos, não reparando para onde os meus passos me levavam na picada, vi-me, de repente, numa clareira,... olhei para o alto e senti o quanto insignificante era eu no Universo.

Miríades de estrelas cintilavam num céu quase celestial. A lua em todo o seu esplendor, pendente no firmamento, iluminava suavemente a clareira onde me encontrava. As copas das árvores pareciam entrar pelo Cosmos adentro. E eu ali, pequenino, senti que era um nada no meio de tudo.



28.10.2002

publicado por marius70 às 02:47
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Os Sons

  Um dos sons que mais admirei foi dos papagaios. O papagaio existente na "minha" floresta era o papagaio-cinza.

  No aquartelamento tive dois papagaios, um já animal feito, privado da sua liberdade já em fase adulta era de difícil trato (e com razão), o outro era ainda muito pequeno quando o tive. Infelizmente ambos morreram de uma doença para a qual não tínhamos antídotos para a debelar lá longe onde o sol castiga mais.

  O mais pequeno, o "Abutre", esse "marcou-me", como era bom chegar de uma patrulha e coçar-lhe o "piolho". Ei-lo aqui e as palavras que ele nunca escreveu.


  Apresento-me, sou o “abutre”. Fui um papagaio já que a morte veio e me levou bem nova para o reino dos papagaios. Era desejo do meu dono ser-lhe oferecida (embora o nome seja masculino eu sou feminina). Não foi possível nem ele assistiu à minha agonia. Talvez tivesse morrido de saudades, não sei! Só sei que três palmos de terra repousam sobre o meu corpo. Lágrimas do meu dono caíram sobre a terra, é como se me tivessem tocado. Sei que ele nunca me esquecerá. Dei-lhe alegria nos seus momentos de tristeza... Eu sou, fui, o “abutre”...

  Cabinda73

  O "abutre"!... pequeno pássaro que me acompanhou durante o tempo que a vida lhe durou. O porquê de “Abutre”? Foi uma questão de olhar para o pescoço vazio de penas. Deu-me a ideia de um abutre e abutre ficou.

  Nunca mais tive aves ou mamíferos em cativeiro.

Com a devida vénia.




Revoltam-se as palavras, já cansadas
da aferição com o pensamento,
que, julgando trazê-las controladas,
descansa no seu convencimento.

Esquece as palavras ditas sem pensar
e as ideias difíceis de expressar.
Uma diferença resolveria tudo
- nascer-se papagaio ou pato-mudo.

in blog «Ideias em desalinho»




Ele nasceu papagaio!

publicado por marius70 às 02:46
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Segunda-feira, 29 de Setembro de 2008

De Luanda a Cabinda


Dezembro de 1973

align=justify>  Saio de Luanda, já como Furriel, a caminho de Cabinda, em Dezembro de 73. Meu destino, B.Caç.11, conhecidos pelos Gorilas do Maiombe.

  A viagem, marítima, decorria serenamente. Dois camaradas meus, conhecidos da EAMA e dos Comandos, faziam-me companhia com destino a um destacamento de rendição individual, algures na floresta do Maiombe.

  Deitado em cima de grades de cerveja, percorria os olhos pelo firmamento pejado de estrelas. O barco transportava viveres e bebidas para os aquartelamentos e povoações costeiras até Cabinda.

  O «Donne Moi Ma Chance», canção não oficial dos Comandos, fazia agora sentido. Pedia que a vida desse uma chance de nada acontecer, a mim e aos meus camaradas, durante o tempo que iríamos permanecer no mato.

  Não sabia nada do meu destino, sabia sim que ficava perto do Congo do Mobutu. Se era zona perigosa ou não só o tempo o diria.

  Uma paragem em S. António do Zaire para descarregar mercadoria. Aproveitei para ir a terra firme (embora tenha nascido junto à orla costeira, eu e os barcos não nos entendemos pois enjoo com facilidade) e conhecer um pouco desta vila perto do rio Zaire. Como os barcos não podiam acostar, a mercadoria era descarregada em batelões e depois seguia para o embarcadouro onde os aguardavam os camiões para carregarem o que lhes era destinado.


  Pareceu-me uma vila muito pequena. Sei que estive num bar junto ao embarcadouro, e enquanto não houve sinal de partida, deambulei um pouco pela zona, as estradas ainda de terra batida, muito sossegada, algumas árvores despontavam mas fora a azáfama junto ao cais nada mais me despertava a atenção. Tantos anos passados, é difícil lembrar todos os pormenores mas fica sempre algo nas gavetas da memória.

  De regresso ao barco, depois de quase doze horas de viagem, clarões alumiavam os céus. Eram dos poços de petróleo, tinha chegado ao meu destino, tinha chegado a Cabinda.



publicado por marius70 às 02:59
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